No glamour da moda, há espaço para discutir a sustentabilidade?
O Cuida, Criatura! esteve presente no DFB 24 e conversou com o estilista Almir França em busca dessa resposta; confira a entrevista
Repórter Maria Fernanda Melo
Editor Gabriel Matos

Nos dias 24 e 25 de julho, o Cuida, Criatura! esteve na 25ª edição do Dragão Fashion Brasil. O evento, considerado o maior desfile de moda autoral da América Latina, trouxe na programação concurso para universitários, desfiles com nomes importantes da moda brasileira, shows e palestras sobre as novas tendências da indústria têxtil, consumo e sustentabilidade.
Em entrevista com o estilista, professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenador da Escola Eco Moda, Almir França, a pergunta do título foi respondida com um enfático e complexo ‘não’. “Não dá para ser um defensor de direitos humanos sendo um grande empresário. [...] Hoje, você pensar a questão ambiental [dentro da moda] é parar o mundo, é parar a produção. O grande ‘R’ do momento deveria ser o reuso”, explica.
França, que também apresentou no evento a coleção Energia, produzida em parceria com a Enel, explica que a iniciativa de utilizar uniformes para a criação das peças vem de um contexto social comum no país. Apesar do brasileiro ter, em média, mais de 42 peças novas por ano, conforme o estudo Fios da Moda: uma Perspectiva Sistêmica para Sustentabilidade (2021), elaborado pelo Instituto Modefica em parceria com o Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a agência para circularidade Regenerate Fashion, ainda é com o uniforme de trabalho que passamos mais tempo.
“Esse é o maior desafio: como é trabalhar esse design, essa moda, a partir desse resíduo, do reaproveitamento. Ainda mais com o uniforme, que é algo tão invisibilizado”, pontua o estilista no vídeo de lançamento da coleção.
O impacto econômico da indústria da moda é poderoso. Segundo dados do Relatório Rio Ethical Fashion 2021, o maior fórum de moda sustentável da América Latina, essa indústria movimenta cerca de 1,5 trilhão de dólares por todo o mundo. No Brasil, é responsável por 9 milhões de empregos diretos e indiretos.

Entretanto, o que fica nos bastidores da economia - algo que já se espera do sistema capitalista - são os impactos socioambientais causados pelo glamour da moda. É o que expõe o relatório lançado, em novembro, pela Ellen MacArthur Foundation, intitulado Uma nova economia têxtil: redesenhando o futuro da moda [A new textiles economy: Redesigning fashion’s future]. Os dados reforçam como a moda e a sustentabilidade não caminham de mãos dadas.
O estudo aponta que, a cada segundo, o equivalente a um caminhão de lixo cheio de sobras de tecido é queimado ou descartado em aterros sanitários. Por ano, 500 bilhões de dólares são jogados fora com roupas que foram pouquíssimas usadas e que quase nunca são recicladas.
Como exemplo desse impacto, há o maior lixão clandestino de roupas no mundo, localizado no Deserto do Atacama, no Chile. As peças comercializadas nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia são produzidas na China e em Bangladesh. Quando rejeitadas pelos consumidores, essas mesmas peças são compradas pelo Chile e vendidas no país. O que não é consumido tem como destino final o meio do deserto.
Confira na íntegra a conversa com Almir França, que traz perspectivas ainda mais palpáveis sobre o impacto da indústria da moda no mundo.
Cuida, Criatura!: Quando começa a sua relação com o debate ambiental dentro da moda?
Almir França: Meu trabalho nasce [...] da necessidade de fazer roupas para o varejo. Como é para um garoto novo, jovem, da periferia, pensar numa roupa de varejo que você sobreviva. Como não era possível pensar em um novo tecido, então fui trabalhando os tecidos fora de estação. Eu não começo na questão ecológica. Digo sempre que não sou ecologicamente correto. Se eu fosse, não estaria trabalhando com moda. Essas questões que a gente precisa aprender no Brasil. Não dá para ser um defensor de direitos humanos sendo um grande empresário. Você não vai conseguir. Você vai ter muita boa vontade, até, mas você tem que alimentar uma indústria. Por isso, pensar a questão ambiental [dentro da moda] é parar tudo isso, é parar o mundo, a produção. O grande “R” do momento só deveria ser o reuso. Desde a Conferência de 1992 [a Rio 92], nós tínhamos metas, mas nós não crescemos nem na reciclagem. Nessa luta de fazer roupa, então, eu fui entendendo que precisava ressignificar o que estava pronto. Era o único jeito de eu conseguir viver o varejo.

CC: Você percebe que há um interesse real na indústria da moda de olhar para a sustentabilidade no dia a dia da produção? Ou é uma movimentação mais pontual de alguns estilistas e marcas?
AF: Acho que tem algumas pessoas já embrionando algum sentimento sobre isso. Mas o Brasil está muito atrasado em relação a isso. Por exemplo, estar aqui [no Dragão Fashion Brasil 25], para mim, é muito importante. É uma tentativa, inclusive, de fazer com que eventos como esse continuem acontecendo. Mas eventos como esse estão em extinção, porque agora o desfile de moda não tem mais função nenhuma. Ele foi pensado há mais de dez décadas sobre a questão do varejo.
Mas tudo que hoje nós não podemos mais é viver desse varejo. A gente sabe que o trabalho escravo é muito sério dentro da indústria da moda. Eu ainda nem estou falando sobre a questão ambiental. Então, eu percebo que é muito lento o sentimento dos criadores ainda sobre isso. Até porque entendo que a gente precisa abrir mão do processo criativo para pensar a questão do reaproveitamento do reuso. Você não vai trabalhar reuso pensando no processo criativo, pensando no design. Você tem que usar o design para resolver a questão do reuso. Isso é muito mais trabalhoso. Não tem mais nenhuma genialidade em fazer uma roupa. A genialidade está em como você vai dar tempo de vida para essa roupa que aí está, dentro do design.
CC: Você considera que reaproveitar esses resíduos pode ser uma alternativa?
AF: A moda é extremamente danosa pela questão do pensamento. A contaminação no mundo está nos pensares. Não é simplesmente separar os resíduos, não colocar o lixinho no rio, isso é uma obrigação nossa. Até porque a gente devia não produzir esse lixinho. Agora, é importante pensar, urgentemente, como meu processo de ofício criativo pode ajudar a dar tempo de vida a esse lixinho, que não é lixo. Eu vi aqui agora [no evento] uma frase, “colocar lixo no lixo”. Essa frase é errada, porque não existe lixo. Existe resíduo e existe aquilo que você não quer mais.
O fato de você não querer mais alguma coisa não quer dizer que aquilo recebe um diagnóstico de lixo. Isso vem acontecendo com a roupa no mundo há mais de três décadas e a gente não se deu conta. E continua sem se dar conta. Roupa não é consumo, roupa é comprismo. Você vê que todo mundo fala, mas como é consumir uma roupa consciente? Ninguém consome roupa por consciência, consome pela imagem que será gerada a partir daquela peça. A roupa devia ser apenas um pano que cobre esse corpo, a função da roupa é essa. No processo evolutivo da raça humana, pelo menos deveria ser. Depois, a gente entendeu que essa roupa podia construir uma certa cidadania, ou seja, me diga onde você está, que a gente diz com qual roupa você ‘deve’ usar. A roupa teve essa função. Ela é uma construção de identidade do mundo moderno? É, mas ela não precisa de tantas formas.
CC: Você considera que o mundo glamourizado da moda tem um espaço real para essa discussão de sustentabilidade?
AF: Isso é um equívoco. Ouvir de um estilista sobre sustentabilidade é a coisa mais patética que se tem. Por isso que, quando estou falando, não como estilista. Estou falando como um sujeito, como um cidadão, que usa a moda, que usei e uso hoje, como forma de defender esse universo, esse planeta. Quero que a moda continue. Preciso que ela continue. Acho que a moda é um câncer, mas os vírus também são as soluções para acabar com os vírus. Então, a moda talvez seja, no mercado da indústria têxtil, o único caminho que consiga pensar uma metodologia de reuso. Veja que loucura.
CC: Será que a gente tem tempo para pensar essa metodologia?
AF: Não sei se tem. E, como já tenho 64 anos, isso fica pra vocês (risos).
CC: Sobre a coleção Energia apresentada no DFB, há uma proposta para que essas peças tenham uma pegada mais comercial?
AF: Acho que esse não é o meu papel enquanto criador, enquanto um sujeito que pensa o planeta. Essas perguntas sempre me são feitas. Mas não estou querendo vender, estou querendo que vocês usem. Esse é o diferencial. Entendo que hoje, inclusive, haja no mercado de varejo justamente esse produto do reuso. Por isso esse movimento dos brechós, dos vintages. Você observa que isso é movimento de varejo. Isso não é movimento de ecologia. Isso é sobrevida, é a solução de alguma situação. O que é muito triste e contraditório, porque essa questão dos brechós é a sobrevida das periferias, mas a gente vê hoje jovens saindo da academia, vendo nisso um grande negócio, o que é outra armadilha. Grandes marcas se constituindo em “marcas de reaproveitamento”. Isso não é uma questão ambiental, é uma questão comercial. Por isso que eu falo, “essa roupa vai vender?”, quem vai dizer isso é você. Você quer usar essa roupa? Vocês viram na abertura [dos desfiles]a questão do uniforme. Eu, enquanto criador, não posso mais ficar usurpando as teorias do artesanato que, historicamente, fizeram mulheres chegarem até aqui, criarem filhos e netos. É patético ver um estilista que fica criando trabalhos numa linha de produção, um trabalho artesanal, maquinando esse processo. Aí vem a Ásia e reproduz uma máquina para fazer isso. É um discurso contraditório no processo.

CC: No DFB 2024 estão sendo realizadas palestras sobre sustentabilidade antes dos desfiles. Percebemos que não tem muito público. Por que você acha que isso acontece?
AF: Não tem público porque ninguém quer discutir isso. As pessoas querem viver um desfile como um grande espetáculo. Eu acho lindo. Ajudei a construir isso. Eu venho desse lugar, entende? Mas, por ter vindo desse lugar, percebo que ele já cumpriu seu papel. Acho que as semanas de moda têm que continuar acontecendo. Um desfile de moda é um ato político. Mesmo aqueles parisienses de 30 anos atrás: a Chanel fez isso, o Saint Laurent fez isso. O que não dá mais é ficar querendo fazer um desfile de moda num modelo piagetiano, francês, em um país em que as pessoas ainda passam fome, no qual mãos-de-obra são exploradas. Essa economia não vai avançar. E estou falando de economia, não estou falando de socialismo. Estou falando de capitalismo. Não existe nenhuma fábrica hoje de roupa no Brasil, honestamente, que viva dos seus próprios lucros. Se alguém disser que sim, eu desminto. Por isso, alguém está saindo mal nessa história. Mesmo com tudo isso, ainda não estou falando de meio ambiente, da lixeira desse processo produtivo. Tem a lixeira do que vai ficando [retalhos] e tem a lixeira também do que vai sendo produzido [peças novas que são produzidas e, ao mesmo tempo, substituídas cada vez mais rápido]. Qual é o tempo de vida dessa roupa? O Brasil não tem uma política de separação para resíduo têxtil, e isso já é um alarme. Se você fizer uma pergunta para as pessoas, qualquer pessoa aqui agora, “o que você faz com a sua roupa que não quer mais”? Todo mundo doa. Todo mundo é bonzinho. E você vai ter essa mesma resposta tanto em Ipanema, em Fortaleza… e nas periferias. Só que essa roupa que você diz que doa é a que chega primeiro no aterro sanitário. A gente vai ter que repensar essa história economicamente. Eu acredito muito que, hoje, essa lixeira do que fica [os retalhos] é a grande saída para a indústria da moda.
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